" As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas". (Fernando Pessoa)

A BAILARINA DA CAIXA DA MÚSICA

Escrevo porque preciso continuar a falar para além de mim, para além do eco da minha voz, para além do som com que pinto as palavras. É por isso que desenho mapas de ruas com letras e deixo cores nas linhas do caderno. Largo-as sem as exigir perfeitas, invento-as tal como faço com o meu dia, despejo-as sem me preocupar com a quantidade e dou-lhes toda a liberdade de seguir. É raro pedir a esta ou aquela palavra que ocupe outro lugar que não o primeiro que encontrou, é como se saíssem da caneta com um número inscrito, com a fila e lugar marcado na plateia da folha em branco. Admito que muitas delas sejam autênticas utopias, mas eu não sou um anjo de colocar no altar nem um moralista sequioso de atenção. Talvez seja uma espécie de suspiro irreal como a bailarina da caixa de música. Escrevo porque recuso ser a sombra de um livro que não escrevi ou o figurante de última fila de um qualquer Auto de Gil Vicente. Escrevo porque preciso e quero continuar a falar para além de mim.

(Francisco Valverde Arsénio)