Penduro o capote no cabide cheio de peças de vestuário mesmo por cima da minha cabeça. Trouxe o capote porque hoje deve ser aqui o dia mais frio do ano. Á minha volta todas as mesas estão cheias, lá fora na esplanada, as cadeiras estão arrumadas e presas com uma corrente. Hoje vai ser um bom dia de negócio para o Arlindo, ninguém quer ficar do lado de fora do café.
Não sabia que escrever quando me sentei, tenho os dedos enregelados e as letras ficam tortas no caderno A5, mesmo assim, como este é quadriculado, as linhas ficam mais direitas que aquando usava o outro liso. Como tenho o poder de me abstrair do burburinho provocado pelas dezenas de clientes resfriados à espera da bebida quentinha, pego na caneta de tinta permanente e ensaio as primeiras palavras. Ainda é manhã e não sei como o dia acaba, mas tudo tem de começar por um princípio e assim, escrevo. A vida distribui-se e divide-se por momentos, por isso vou escrever um pouco mais que o habitual neste caderno onde rabisco todos os dias. Não sei se o dia de hoje vai ser diferente de ontem, talvez seja, talvez não, mas vou deixar-me embalar rasurando ou não o que escrevo. Há pouco, mal comecei a escrever faltou a tinta na caneta, mas trago sempre umas quantas cargas na mala para não acontecer o mesmo do outro dia em que terminei a crónica com um lápis do IKEA. Podia ter deixado as páginas em branco ou escritas com outra cor mas não sou capaz de fazer tal coisa, tenho rituais na escrita e a minha caneta de tinta permanente é a extensão dos meus dedos.
Sempre, como sempre, vou falar de ti. Vou tentar descrever-te como personagem da minha vida onde existes em cada página, em cada crónica. Vou estender-te ao correr das linhas e desenhar o teu corpo por palavras, todas as palavras que me pertencem. Sempre, como sempre vou falar de ti. Aqui sentado neste canto, é o momento ideal para te descrever por entre os minutos badalados pelo relógio grande naquela parede.
Aqui encontro-me entre o silêncio que me percorre o corpo. Neste momento de isolamento deixo-me levar por ti e transformo-te em palavras e espaços em branco entre linhas.
Vou falar de ti com quem tanto aprendi. Aprendi que todas as minhas palavras são sempre insuficientes e que a intensidade deixada nos afectos é medida com os olhos nos olhos e que os beijos tem sempre um gosto a pouco. Aprendi que todas as feridas podem ser saradas e que as lágrimas vertidas acabam sempre por secar.
Ainda é cedo nesta manhã fria, mas vou dar o teu nome ao dia, à tarde e à noite. Vou dar-te todos os minutos de todas as horas… tu mereces, sabemos que mereces. Ainda é cedo mas vou presentear-te na noite fria que se anuncia, sim… uma noite tua, apenas tua. Serei apenas eu entre todas as palavras e os silêncios, entre aquilo que quero dar-te. Ainda é cedo mas vem, vem porque acredito em ti quando por vezes me interrogo se devo acreditar-me… vem. Vem que irei pôr a tocar a primeira faixa de Herbie Hancock - “Jammin With Herbie”, vem! Sem promessas doutra noite como esta, deixa-me ser eu um pouco mais, o teu corpo junto do meu, as tuas palavras, o teu olhar perdido no meu.
Levanto a cabeça do caderno e estico as pernas entorpecidas pelo frio, peço mais um café e releio o que já escrevi. Penso-te e vou continuar a falar de ti.
Recordo-te em todas as palavras que me dizes e que me tens dito no tempo que fazemos nosso. Falas muitas vezes nas diferenças e semelhanças entre os meus olhos e o meu sorriso e que a sinceridade do meu sorriso termina no tom acastanhado dos meus olhos. Sei que por vezes duvidas da definição dos meus olhos tal como fazes com muitas das minhas palavras, e sussurras-me tudo isso com esse sorriso de menina que me tem perdido cegamente.
Tens no pensamento uma paleta de cores com que pintas os sentimentos e, num sorriso desconcertante, dizes como sou ingénuo sempre que te abraço e te faço minha. Mas não! Não me fales mais nas cores dos sentimentos, arruma essa paleta, não me fales mais em certezas que ambos duvidamos.
Retrocedo no tempo pensando-me e questionando-me… podia amar-te mais? Na verdade pensei que podia amar-te mais. Pensei que podia beijar-te mostrando sempre o mesmo desejo, esse desejo que me alimenta todos os poros da pele. Pensei nisto tantas e tantas vezes.
Começaste em mim como se fosses um cigarro, um prazer de momento que, numa inspiração relâmpago, se começa e acaba. Fui egoísta aqui e ali, confesso, mas tal como o fumador acaricia o cigarro na hora do vício, eu acariciava o teu corpo e levava-te até aos meus lábios sedentos. Agora que ficas e vais ficando, não me importam as pequenas coisas que já achei enormes, não me importa nada para além do teu olhar perdido no meu enquanto percorro os meus lábios na tua pele.
Quero-te hoje ainda que seja manhã e não saiba como o dia vai acabar; quero percorrer e sentir que esse arrepio sentido é provocado por mim, quero saber de cor o teu perfume e perder-me no teu jeito perverso que me prende a ti. Quero-te hoje ainda que seja manhã e não saiba como o dia vai acabar; quero-te naquele momento em que o desejo fala mais alto que os sentidos; onde a tua roupa cai no chão e o teu nu me chama. Assim, desnudada, és muito mais tu, mais menina mulher nesse sorriso de lábios abertos sussurrando que me junte a ti.
Quero-te como se dum jogo se tratasse. Aproximas-te e tiras-me a roupa que me pesam toneladas e em silêncio me dizes que sempre te pertenci.
Olho-te… quero-te!
És um mapa que percorro, conheço todos os caminhos, todas as ruelas, todos os becos e avenidas. Conheço a planície desbravada pelas minhas mãos, cheia de odores campestres, selvagens, com sabor a mar ainda que o mesmo fique a quilómetros de nós. Quero-te aqui quando nos perdermos nos corpos, quando a tua boca faz prolongar todos os beijos.
Quero-te e… olhas-me ao compasso dos tempos e do prazer.
Olho à volta e o café está quase vazio, demorei um pouco mais a descrever-te desta vez, mas valeu a pena, vale sempre a pena quando saltas do aparo da minha caneta e fazes-te personagem.
(Francisco Valverde Arsénio)