O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala,
sentados, deitados de olhos abertos.
O sol a iluminar o sofá grande,
o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos.
O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas.
Escrevi duas páginas.
Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos.
Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas.
Descrevi-lhe o silêncio.
E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza,
fechava os olhos e parava-me a olhá-la.
Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e,
de cada vez que repetia este exercício,
conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase.
Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama.
Adormeci a olhá-la.
Adormeci com ela dentro de mim…
(José Luís Peixoto, in 'Uma Casa na Escuridão')